25.3.08

500 Millas después

Na última segunda-feira, dia 17, dirigi 650km na compania do Rocca até a cidade de Artigas, no norte do Uruguai, para participar da 40a edição das 500 Millas del Norte, tradicional prova que acontece na semana da Páscoa.

A prova começava na terça-feira à tarde com um contra-relógio individual de 1,5km pela avenida principal da cidade. Seria o batismo de fogo da minha nova Cervélo. Largávamos conforme o número de nossa inscrição; eu era o 72o ciclista a largar. O melhor tempo ainda era do primeiro ciclista, o campeão do ano passado e detentor da dorsal 01, Cláudio Arone (Italomat/Argentina), com 2m04s.

Largo com força na leve descida dos primeiros duzentos metros, as marchas rapidamente indo para metragens maiores e maiores, mesmo com a subida nos últimos 500m do trajeto de ida. Quase erro a curva do retorno, freando bruscamente para fazer a virada antes da rótula (achava que se fazia o contorno da mesma para então voltar). De volta na posição aerodinâmica, a bicicleta acelera assustadoramente na descida, tento pensar em não cair ao voar por cima de um quebra-molas, faço os últimos 200m num leve aclive e cruzo a linha esbaforido.

Depois de desacelerar e voltar girando para o ponto de largada/chegada, o Rocca vem sorridente. "Cara, teu tempo foi o melhor!"
"Fala sério!"
"Tô te dizendo, dois e zero-dois, é o melhor tempo até agora!"
As pernas tremem um pouco. Já foram 70 ciclistas, ainda faltam mais de 30, ou seja, pouco mais de meia-hora. Faço um desaquecimento para soltar as pernas, e aguardo ansiosamente na "cadeira elétrica" até o último ciclista chegar. Caracas, ganhei a etapa! Cumprimentos dos outros ciclistas, dos organizadores, entrevista na rádio, gente pedindo pra tirar fotos - surreal, no mínimo. No caminho de volta pro alojamento, ligo pra casa pra contar pra todo mundo. Depois do banho e janta no comedor de barrio, e já com a planilha de tempos oficiais na mão, faço mais algumas ligações e vou com o Rocca comer um helado para comemorar.

Na quarta-feira, recebo a malla a quadros do prefeito antes dos 118km da etapa Artigas-Quaraí-Livramento-Rivera. Mais uma entrevista para um jornal, fotos. Partimos, e ando na frente do pelotão, abanando e curtindo o cerimonial da largada controlada até o início oficial da etapa. Não tinha pretensão nenhuma de defender a liderança, uma vez que estava correndo sozinho, e os próximos concorrentes possuiam todos equipes bem fortes para apoiá-los. Em algum ponto próximo a metade do trajeto, já incapaz de responder a cada um dos ataques, uma fuga se estabeleceu e eu me contentei em andar no pelotão até nos aproximarmos de Rivera, quando tomei novamente a frente para exibir minha camisa ao entrarmos na cidade. Cheguei exausto, mas ainda assim radiante. Completar um dia com a camisa de líder foi uma experiência talvez tão incrível como ter ganho a etapa no dia anterior.

Nos dois dias seguintes, sem a liderança para defender - de fato, havia caído para algum 38o lugar - pedalar no pelotão foi bem mais fácil. Infelizmente tive um pouco de azar na quinta-feira, numa etapa de 113km, furando meu pneu dianteiro quando restavam menos de 10km para a chegada, o que me custou alguns minutos na classificação geral, mas ainda estava bem contente com meu desempenho na etapa. Na sexta igualmente, me concentrei em economizar energias andando sempre de roda no pelotão, junto ao qual cheguei depois dos 95km da etapa.

Então, veio o contra-relógio de sábado. Depois da minha vitória na disputa com o cronômetro no primeiro dia, eu era cotado por vários como favorito para esta etapa, de 20,5km. Largávamos na ordem inversa da classificação geral, com um intervalo de um minuto entre cada ciclista. Eu era o 46o ciclista a largar, exatamente no "meio" dos 91 que ainda permaneciam na competiçao. Fiz meu aquecimento, alinhei para minha largada, e arranquei - queria imprimir um ritmo forte desde o início. Então, minha corrente escapa e eu pedalo em falso, olho para baixo para tentar entender o que se passa, e minha roda dianteira acerta uma pedra, me fazendo voar por cima do guidão e aterrisar no asfalto. Caí raspando a lateral direita, batendo o joelho, quadril, braço e cortando minha mão, que estendi para tentar me proteger da queda. Fui imediatamente colocado de volta em cima da bicicleta por alguns torcedores, tão rápido que não tive sequer tempo de dizer "Mas está doendo!". Com um empurrão, estava andando novamente, ainda meio torto em cima da bicicleta que, por sorte, nada sofreu.

Foi um contra-relógio de merda. Na primeira subida, não conseguia fazer força pedalando em pé, por causa do ferimento na bacia. Baixei as marchas para a coroa menor, esperando permanecer sentado e girar mais, mas com isto minha corrente caiu, e perdi mais algum tempo até colocá-la de volta. Subi num ritmo medíocre, bem abaixo do que havia planejado quando fizemos o reconhecimento do percurso no dia anterior. O vento forte que incidia perpendicularmente à estrada também não ajudava, a dirigibilidade era terrível, e eu me debatia para conseguir manter um ritmo forte em cima da bicicleta. Próximo ao retorno, alcancei o ciclista que havia largado um minuto na minha frente, um atleta da seleção brasileira de juniores, e ao fazer a volta, gritei para o Rocca no carro de apoio "cara, tá doendo muito, só vou completar". Só completar, certo, mas não queria chegar com um tempo medíocre. Mantive o passo, mas sem forçar nas subidas e descendo com cautela, segurando nos freios para não correr o risco de levar outro tombo. Alguns quilômetros depois alcancei o ciclista que largara dois minutos na minha frente, e isso me motivou a tentar andar um pouco mais. Nos últimos dois quilômetros, já vendo o ciclista dos 3 minutos na minha frente, tentei dar um gás para alcançá-lo antes da chegada, mas sem sucesso. Doia muito quando cruzei a linha, e imediatamente pedi ao Rocca que chamasse a ambulância para olhar meus ferimentos.

No radio da ambulancia está passando a narraçao das 500 millas. A enfermeira, ao me atender, pergunta:
"¿Te ha caída después de la llegada?
"No, no, cai luogo después de la largada", respondo no meu sofrido portuñol.
"¡Pero tienes el mejor tiempo hasta el momento! ¿És Ricardo Mariense, no?"
O Rocca chega na ambulância logo depois e confirma que eu havia cronometrado 31m07s, de fato o melhor tempo dentre os quase 50 ciclistas que já haviam completado a prova. Feitos os curativos, voltei à expectativa de aguardar os demais que chegavam. Somente com o 14o-penúltimo ciclista o melhor tempo caiu para 31m05, e com os últimos oito ou nove é que a marca foi sucessivamente melhorada, até o líder da prova completá-la em 29m28s. Acabei na 10a colocação, que já seria por si só um resultado fabuloso, mas que foi comemorada como uma vitória dadas as circunstâncias com que a obtive. ¡Alto cinco!

A noite foi bem ruim, dormir com machucados abertos é sempre um tanto traumático, mas consegui descansar suficientemente para poder largar a última etapa, domingo pela manhã. Antes da largada, o Rocca disse tudo: "Se vais ficar reclamando das dores, empacotamos a bicicleta e vamos pra casa agora. Mas se tu vais mesmo largar, então soca o pau!". Andei no grupo da frente a prova inteira, inclusive andando escapado por alguns quilômetros antes de ser recapturado, e atacando de novo na subida do "repecho" faltando 30km para o fim da etapa (infelizmente novamente neutralizado). Com o forte vento lateral nos últimos 10km, o pelotão se dividiu em dois, e fiquei na metade de trás, perseguindo o grupo que estava sempre 20 ou 30s na nossa frente. Entramos na cidade, tomada pelo público nas ruas ouvindo a narração com radinhos colados aos ouvidos, tomei a dianteira para tentar diminuir um pouco mais a diferença com o primeiro pelotão, e para ter a melhor visão de todo o espetáculo que se encerrava. Embalei para o sprint e cruzei a chegada junto com outros 30 ciclistas, numa rua que era tomada pela multidão pedindo autógrafos e souvenirs dos ciclistas que iam completando a prova. Só tenho motivos a comemorar, o que faço prontamente, congratulando outros ciclistas, recebendo parabéns dos organizadores e dirigentes, de outros atletas, do público em geral - incrível mesmo.

Banho no alojamento, bicicletas no carro, um sanduíche reforçado antes de pegarmos a estrada, e encaramos as quase 8 horas de viagem de volta para Porto Alegre, onde chegamos perto das 22h do domingo. Foi fantástico. Depois de duas tentativas frustradas (2003 e 2005), consegui chegar ao final de uma edição das 500 Millas, ainda por cima trazendo de volta a vitória em uma etapa e uma camisa de líder.

As 500 Millas eram o primeiro objetivo esportivo desta temporada. Há um ano e meio atrás, anunciei que queria voltar a competir seriamente, e mencionei esta corrida como um dos objetivos. Como diz meu padrinho, "Entscheiden heisst Verzichten": escolher é desistir. Talvez pouca gente saiba do que foi preciso abrir mão para chegar aqui hoje, e talvez menos ainda compreendam as razões, mas não é isto que importa. Foi e está sendo um caminho fantástico, e só posso agradecer a companhia daqueles que tem andado junto. Valeu Rocca por todo o apoio lá no Uruguai, obrigado aos colegas da faculdade e do ciclismo pela torcida dos que ficaram por aqui, ao meu pai por tornar tudo isso possível, a todos familiares próximos ou distantes que acompanharam, aos amigos que vieram comemorar ontem este resultado. Obrigado mesmo. Essa é para vocês.

4 comments:

Grace said...

Congratulations!

Romi said...

Todo machucado e ainda continuaste correndo. "ta doendo". Muito bom. Parabéns por tudo.
=O)
=O***

Unknown said...

Whiskas, deu até arrepios ler tua narrativa! Já sabíamos em parte pelo Mário, que almoçou conosco a "Galinha de Páscoa", mas não sabia que tinhas feito o melhor tempo já no primeiro dia! Parabéns! Já valeu a pena trazer a bicicleta... E o almoço em POA fica pra outra hora. Um beijo!

mulherescorremcomlobos said...

Como eu disse e repito: o nível de respeito ao ciclista lá fora tem profundas diferenças, mesmooooooooooo!
Isso ae....
[ ]s pedalísticos
http://farofinolhovivo.blogspot.com/